terça-feira, 14 de janeiro de 2014

O ARTIGO DE LÚCIA HELENA PEREIRA - NATAL/RN



 Eu tinha cerca de três anos, quando iniciei, por exigência de mamãe, aulas de alfabetização com Valdinha (Valdecir Vilar de Queiroz Soares). Que doce e suave presença humana em minha vida! Sua casa cheirava a flores. De longe sentíamos os aromas do seu jardim -um verdadeiro éden- espargindo dos cravos, dálias, jasmins, rosas, bogaris, jasmim-vapor, resedás, margaridas e outros espécimes vegetais que me enchiam de encantamento. Na casa branca havia um terraço adornado com um conjunto de cadeiras de ferro e o balanço; jarros com beijos de várias cores; a cisterna (provocando-me uma sensação indizível) cortejada pela poética sombra de um caramanchão, cuja trepadeira exibia em seus galhos, pequeninas e mimosas rosas. Relembro as árvores do quintal: os pés de carambolas, laranjas da terra, pitangas, maracujás (imiscuindo-se nesse reino e acasalando-se com a exuberante trepadeira). Ouço, como se fosse hoje, a cantiga das cigarras envaidecidas seduzindo aquele cenário! Ao sair da aula, diariamente, lá estavam as minhas companheiras dos meus dias de infância: Chiquinha e Bibiliu (filhas de Inês, a ama-de-leite das crianças da nossa família). Suadas e esbaforidas, com os cabelos arrepiados, logo anunciavam (pareciam anjos com suas trombetas): “Luça, tu nim sabe qui vimo um sapo seco e isturricado. Tava virado de papo pra riba, pertim da arvre da isquina do berro (a esquina da minha casa, onde um carneirinho apartado da cabra, berrava com dilacerante mágoa). O danado do sapo tá é dando siná de coisa rim, vombora logo interrá o bicho nojento, mode num pegá rindade im nós...” Elas deveriam ter cinco e seis anos (pareciam gêmeas). Eram alegres, criativas, sempre satisfeitas, irradiando felicidade (de onde viria a felicidade dessas humildes criaturas, que amanheciam e anoiteciam em nossa casa?). Astuciosas (longe dos olhos de mamãe e de Babá), certa vez apareceram com massa crua de pão e fomos para o quintal da casa. Lá, elas fizeram bonecos e bichinhos, utilizando caroços de frutas para fazerem os olhos. Estavam “com a mão na massa” quando surgiu o dono da padaria (“c´as venta inguá os bueiros do ingenho baforando fumaça”)- segundo Bililiu. “São essas duas espevitadas, senhor Abel e dona Áurea, mal tive tempo de impedir que me levassem boa porção de massa, logo deram no pé. São umas pestes, não deviam deixá-las com a filha de vocês...” (desabafou irritado). E papai, com a sua peculiar bondade, lhe disse: “Ora meu caro, são apenas crianças, pagarei os prejuízos...” Infelismente mamãe proibiu - me de brincar com as meninas durante uns dias, restringindo-me ao lazer com a mana Iara e algumas primas. Depois, pedi - lhe, encarecidamente, que mandasse buscar minhas amiguinhas. No dia seguinte, ao sair da aula, as minhas tristezas foram recompensadas com a chegada barulhenta das diletas companheiras, que, alheias às humilhações sofridas anteriormente, traziam uma euforia contagiante: “Si Luça subesse, conto a gente brincô! Cumemo bolo de fubá na casa de dona Rosinha, a moça véia da Ingreja, que deu retaios mode nóis fazê vistidim pras bunecas. Fizemo de chita, de fustam, de bolinha e preguemos inté butão de ôro. Fumo vê armá o circo qui tinha girafa, lião, trigue, macaco e vimo os povo si pindurando n´aquelas corda cum tárbuas in tempo de cairim” (eram os trapezistas Mascotinha e Mascarenhas ensaiando para se apresentarem no circo). Impregnada das emoções daquelas novidades, essas “cenas” me pereceriam, hoje, ilustrações de um livro, do escritor Louis Carrol, deixando-me penetrar, a cada instante, no reino encantado das maravilhas de alguma Alice. Eu tinha esse mundo em minha cabeça e em meu coração. Vivia-o com intensidade, sempre distante dos rigores de minha sábia mãe e dos olhares de Babá (Regina Dias). Num desses dias de chuva forte (o vale ficava carregado de nuvens choronas), elas chegaram como presenças ensoloradas, sorrindo, pinotando, cantarolando e alegrando o ambiente. Traziam, com orgulho ímpar, um cachinho de flores “fisgado” dos jardins espalhados pelos caminhos. Bililiu, bem mais falante, fez uma leve vênia e disse: “Florinha mode Luça infeitá seu artá” (um oratório que mamãe colocara em meu quarto e de Iara, onde a imagem de Nossa Senhora da Conceição se destacava). Depois, da mochila de pano que sempre traziam com elas, foram tirando papel prateado (que revestia as carteiras de cigarros). Esses papelotes eram colados uns nos outros (cola artesanal, feita em casa). Ao secarem, davam um acabamento nas bordas brancas, com anilina de cores variadas (da caixa de trabalho de mamãe) e estavam prontos os colares. Dias depois, quando as chuvas saíam de férias, ficávamos no calçadão da minha casa, sentadas em tamboretes da cozinha para vendermos os colares. Elas imploravam: “Compre um colá que é do Rio de Janeiro; esse roxim e esse azuzim custa um tustão, o de prata é doistões. Cheque, se avexe, compre ó meno um...” No final da tarde, os colares estavam amassados e desbotados e o humilde comércio, logo falido! Eram brincadeiras inocentes, sem nenhuma malícia. Falando nisso, um dia fomos à casa de dona Amélia Barroca, perto da linha do trem, do outro lado da nossa rua. Dona Amélia vendia as mangas rosas mais belas e perfumadas, enfurnadas num baú de madeira, com folhas de bananeiras. Logo na entrada viam-se vários pés de malícia que Chiquinha e Bililiu cantavam: “Sai malícia, teu nome é priguiça, vai drumi n´outo pasto qui aqui ocê num tem vez!” E dona Amélia abria um sorriso largo e nos abraçava dizendo palavras carinhosas e presenteando-nos suas lindas mangas. Que terna lembrança dessa boa senhora! Creio que Chiquinha e Bililiu continuam brincando, em algum lugar, trepadas em mangueiras, goiabeiras, assobiando como os passarinhos, olhando os circos e fazendo figurinhas com massa crua de pão. Onde estarão? Como reencontrar esses “mitos” da infância? Essas vozes que ouço em meus momentos de contemplação e de poesia? “Arre, Luça, tás pirigando pegá catapora de nóis. Ramo vê cumo vai ficá se coçando, cum a cabeça duendo e os óios pegando fogo cumo brasa. Mai tem que ficá na cama e tumá bain cum fôia de sarsa isquentada, mode muxá as boinhas (bolhinhas)...” (Bililiu) “Eu num digo nadim e só vô alertá uma veiz, pra num dizerim qui sô rim: o tá de Zeca qui mora pertim do cimitero anda vendo arma de tudo que é gente. Ele viu arma inté do finado Suares qui morreu im Sum Paulo. E cumo é qui uma aima doutro canto vem isbarrar pur essas banda? Vumboro usá figa mode afastá essas arma. Tô inté tremendo cumo vara verde e num duvidio qui esse cundenado vem pegá in n´eu hoje de noite!” (Chiquinha). Essas palavras ressoam em meus ouvidos, até hoje, como sinfonias diletas. 
 
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