terça-feira, 23 de junho de 2009

CASA GRANDE BUSCA A MÚSICA PRÉ-HISTÓRICA OS KARIRI

Eduardo Sales de Lima/via e-mail
de São Paulo (SP)
Casa Grande busca a música pré-histórica
Os Kariri
Com clima mais ameno que o semi-árido que o cerca, a região do Cariri (que abrange cidades do sul do Ceará, de Pernambuco, do Piauí e da Paraíba) seduziu diversos grupos, desde indígenas até holandeses, vaqueiros e romeiros. Daí o sincretismo cultural e religioso pulverizado pela região. Um mistura que, mesmo séculos após o encontro dos colonizadores portugueses com os povos originários, teceu a criação de um dos principais mitos do nordeste, Padre Cícero Romão Batista.
Para o professor da Universidade Federal do Ceará (UFC) Luiz Tadeu Feitosa, que elaborou seu doutorado sobre Patativa Assaré, outro ícone do Cariri, “a marca, não identitária, mas de formação de um discurso sobre o Cariri, é a comparação com um oásis, o contraste de um verde perene com a seca, que na região tudo dá”. Esse oásis, repleto de “pedras e pessoas encantadas”, como lembra Alemberg Quindins, diretor da Fundação Casa Grande, está em exposição no Sesc Ipiranga, em São Paulo, na “Mostra Cariri, ser tão cultura”, que estará em cartaz até 7 de junho.
As lendas de que o sertão vai virar mar, para os caririenses, têm ainda mais vigor. Segundo Alemberg, um dos organizadores da exposição, a Chapada do Araripe, planalto que se espalha pelos Estados do Ceará, de Pernambuco e do Piauí, e que está incluída no Cariri, era uma região lacustre formada por águas oceânicas. Ele explica que após um movimento de placas tectônicas, o lago foi baixando por conta da evaporação e, desse modo, ocorreu sua soterração. “Houve um aterramento desse lago, e os peixes ficaram na lama. Devido ao próprio nível de salinidade, não tinha como decompor microorganismos. Hoje é uma das principais reservas paleontológicas no planeta”, explica Quindins.
“Pedras encantadas”
Feitosa lembra que o fato dessa região conter zonas imensas de marcas arqueológicas e paleontológicas “entra no processo imaginativo das pessoas, e elas dão asas a isso”. Principalmente, segundo ele, na cidade de Santana do Cariri.
“As pedras locais exalam mistério. Por isso, o Cariri sempre foi uma região misteriosa que guardava nas pedras as lembranças de estórias de castelos encantados; falava-se que houve um reinado que se encantou”, ilustra Alemberg Quindins. Segundo ele, um dos motivos que criam tal mística é o fato de na região existir “até peixe dentro das pedras”.
Vieram os cordelistas e poetas populares que se apropriavam dessa mística, enveredando-se por entre os causos fantásticos e o próprio cotidiano do sertanejo. “A história de que um dia a região já foi mar mexeu e ainda mexe com os poetas do cordel”, afirma Feitosa. Amigo do poeta Patativa do Assaré, o professor da UFC lembra que ele lhe disse várias vezes que “a maior maravilha do sertão era a gente se sentar debaixo dos juazeiros para ouvir as histórias do Brasil e do mundo recitados em cordel, além dos contos fantásticos”, conclui. Nesse âmbito, ele defende a idéia de um legado de um dos povos originários da região, a oralidade na poesia, “marca que faculto à nação Kariri, que praticamente desapareceu, mas deixou marcas”.
Fé de lenda
Hoje em dia ainda são encontradas, em pequenas casas de oração dos descendentes do povo Kariri, imagens de santos da igreja católica, do padre Cícero, além de personagens do candomblé e das próprias entidades indígenas.
Padre Cícero é bem responsável por isso. “Ele não conseguiu controlar essa religiosidade ensejada em Roma, porque a criatividade popular é muito maior que isso”, explica Feitosa. Segundo ele, os estudos dão conta de que foi a força da cultura local que fez ele se adaptar àquela religiosidade popular que já existia por conta da inserção indígena. “Uma vez catequizados, os índios também misturaram elementos ritualísticos deles com os trazidos pelos portugueses”, explica Feitosa.
“Quando ele chega, começa a pegar os elementos da antropologia local e levar para o sermão. Na época em que se rezava em latim, de costas para o povo, quando se falava que o Apocalipse definia o fim dos tempos, ele se apropriava de uma lenda local e dizia que o sertão voltaria a ser mar. Tanto que essa lenda aflorou na Bahia, com Antônio Conselheiro, mas ele era um cearense, que veio de Quixeramobim [Ceará], do Cariri”, conta Alemberg.
Personagem-chave
O Cariri é considerado um entroncamento das migrações humanas, que buscavam, sobretudo, água. O povo indígena Kariri, segundo Alemberg, são os descendentes diretos dos primeiros habitantes pré-históricos da região, que deixaram inúmeras marcas nas pedras locais. Por sua vez, os indígenas tiveram os primeiros contatos com o explorador branco no século 17. Atraídos pelo bom clima e pela fertilidade das terra, criadores de gado provenientes da Bahia e Sergipe levaram a essa região seus rebanhos e construíram os primeiros currais. Era o ciclo do couro (final do século 17 e início do século 18). Os índios que não queriam ser vaqueiros iam para os talhados na chapada.
Trata-se, ainda, de uma região onde Afonso Sertão, capataz de Garcia D'ávila (grande criador de gado), tomava as terras indígenas para seu patrão. Esse é um dos pontos de partida do coronelismo na área.
Quase dois séculos após o ciclo do couro, Padre Cícero percebeu que “num mundo de feras, tinha que ser fera”, conta Tadeu Feitosa. Misticismo e a política de enfrentamento aos coronéis rodeavam sua figura. Ao mesmo tempo de ter transformado Juazeiro do Norte (CE) na maior cidade do Ceará, seu sítio se chamava o Horto, suas orações eram feitas num local chamado Santo Sepulcro, e o rio que passa no pé da Serra é o rio Jordão. “E o beato que andava com ele se chamava José. Por quê?”, compara Alemberg, fazendo referência aos elementos da vida de Jesus Cristo.
Seu posicionamento religioso peculiar, em que se apropriava das crendices do povo da região, de acordo com Feitosa, fez com que ele tivesse o apoio dos fiéis e, por conseguinte, abraçasse a causa política sem nenhum problema de consciência. Mas isso não impediu que ele lançasse mão dos mesmos meios que os coronéis usavam. “Se precisasse invadir, ele invadia, se tivesse que enxotar alguém, ele enxotava. Era latifundiário como os demais. Em nome da fé, comprava e vendia gado”, conta Feitosa.
Babel
Reflexo de toda miscelânea cultural, o “Cariri é considerada uma espécie de Babel”, segundo Feitosa. Isso porque, de acordo com ele, mistura o contemporâneo, tudo o que há de moderno, com a marca mais forte da ancestralidade nacional”. É possível testemunhar tal Babel que menciona Feitosa nas corriqueiras conversas na calçada, nas cantorias, nas declamações em feiras. “Isso acontece todo o dia”, lembra o professor da UFC.

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